OPINIÃO

Esquecidos na ruína da empatia

Quem anda pelo mundo do futebol despertou, nos últimos dias, para uma brutal e emocionante entrevista feita por Gary Neville a Dele Alli. Deixem-me dar-vos algum contexto… Dele Alli, atualmente com 27 anos, chegou a ser considerado um dos jovens prodígios do futebol mundial. Fez até parte da equipa do ano da Liga Inglesa em 2015/16 e 2016/17, quando tinha 20 e 21 anos. Nessa altura, não faltavam elogios ao jovem Dele… mas a queda foi abrupta e inexplicável. Hoje? É só mais um entre muitos, passeando de clube em clube à procura da glória prometida.
Por estes dias, Dele Alli voltou a estar nas bocas do mundo. Numa entrevista arrepiante, o jogador revelou que foi abusado por um amigo da mãe quando tinha apenas seis anos. Que começou a fumar aos sete anos. E aos oito anos começou a traficar drogas. Acabou por ser adotado aos 12 anos, por uma família que lhe deu as oportunidades que a vida lhe foi negando até então.
O sucesso e a vida de sonho acabaram por chegar. Dele Alli tinha tudo para ser marcante no mundo do futebol. Mas não foi isso que aconteceu, como já sabemos. Como Dele contou. Partilha que nos relembra que há pessoas para além dos atletas – e isto aplica-se em qualquer nível, da Liga dos Campeões à Distrital. O sucesso não reside apenas no atleta. Reside, sobretudo, na pessoa. Obrigado por nos recordares disso, Dele.
Mas deixa-me dizer-te que és uma pessoa cheia de sorte, Dele. Há milhares iguais a ti que passam despercebidos, esquecidos na ruína da empatia. Milhares que não têm a quem pedir ajuda. Milhares que não têm a sorte de ser adotados por uma família. Milhares que não têm dinheiro para uma boa clínica de reabilitação. Milhares a quem ninguém estende a mão. Milhares que passaram pelo mesmo e que hoje são ostracizados porque a oportunidade nem sempre anda de mão dada com a compreensão. Milhares que vivem de apoio social em apoio social, de RSI em RSI, na pobreza indigna de quem é esquecido pela vida. Milhares sepultados sobre um qualquer lençol de água. Os miseráveis, chamam-lhes. Sortudos por já contarem com algum apoio quando não sabem mais do que ser membros improdutivos da sociedade.
És uma pessoa cheia de sorte, Dele. Lamento toda essa madrasta infância. O desejo é que cures os traumas, que consigas voltar a ser o incrível jogador que eras. E se não conseguires, não há problema. Que sejas apenas o melhor que conseguires ser, hoje. Amanhã será melhor. Quanto aos miseráveis… que não desesperem na ruína da empatia. Haverá sempre mãos para o conforto dos que não falharam na vida mas que viram a vida falhar-lhes. Um já é demasiado.

Nuno Margarido
Jornalista

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