Opinião
Estava muito indeciso. Por um lado, apetecia-me escrever um texto sobre “a perspetiva do burro”, em que mostrasse que o Natal pode ser celebrado por todos, com mais um menos espalhafato, e que mesmo no presépio o Menino quer companhia. Por outro lado, o apelo da terra, estava a levar-me a revisitar o conto “roubaram o Natal” porque, ao que parece, por cá, apagaram completamente a Natália do mapa e o Pai Natal deixa de brincar. Mas não é tempo para isso – arrumo assim num parágrafo o que tinha na cabeça (por isso se diz que o conhecimento não ocupa lugar) e vou dedicar-me a algo que possa interessar.
2025 marca o ano em que nos despedimos do Papa Francisco mas a saudade é grande e a sua maneira de ser e de estar continuam a ser fonte de iluminação. Entre muitos recentes livros que gostaria de recomendar estão O Louco de Deus no Fim do Mundo, de Javier Cercas, e Recordar Francisco – A última Jornada do Papa, de Rosa Pedroso de Lima. Um ateu e uma católica. Um espanhol e uma portuguesa. Um escritor e uma jornalista. Um desconhecido e uma amiga. Duas obras que, a pretexto de deslocações simbólicas do Papa, à Mongólia e às Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) em Lisboa, ajudam a perceber como Francisco fez a diferença e mudou a História do mundo em geral e as histórias de muitos em particular.
Rosa Pedroso Lima foi a porta-voz das JMJ mas teve a humildade extraordinária de se limitar ao testemunho do trabalho e das vivências dos organizadores e voluntários. Tal como aconteceu em Vagos e muitos outros lugares, houve milhares e pessoas envolvidas, por exemplo a acolher peregrinos estrangeiros, e foi essa entrega que permitiu que mais de um milhão de jovens pudessem ouvir o apelo à abertura a “todos, todos, todos”. Foi claro que aquele velhinho vestido de branco adorou a receção, dos seus gestos e palavras, e quem lá esteve sentiu uma energia especial, tão importante nomeadamente quando se é jovem. Eu sei, porque tenho ideia que também já fui.
Com ou sem as luzes dos grandes momentos, o líder de uma religião está sempre na ribalta, pela posição que ocupa, e é mesmo uma superstar, pelo que Francisco chegou a dizer que um dos problemas (pecados, se quiserem) era o do culto da personalidade. Antes de ler Javier Cercas, pensava que, ao contrário, Francisco quis ser ele próprio, um sacerdote junto do povo, um de nós. Em O Louco de Deus no Fim do Mundo, percebemos que esta atitude decorre da consciência aguda da própria limitação. Francisco sabia-se um homem como os outros, marcado por dúvidas, erros e contradições, e talvez por isso tenha tentado sempre ir além de si mesmo. Diz Cercas que “de certa forma, talvez Francisco seja mais Bergoglio do que o próprio Bergoglio, porque é o Bergoglio que Bergoglio aspira ser”.
O Papa, longe de se apresentar como modelo inalcançável, foi alguém que lutou diariamente para estar à altura da mensagem que anunciava — um “louco de Deus” não por se julgar acima dos homens, mas por se recusar a aceitar que a fragilidade seja o último horizonte da história humana.
Como a Menino de Belém — sinal de um Deus que escolhe a vulnerabilidade como caminho — o Papa não se apresentou como figura de poder, mas como alguém em permanente conversão: um homem comum que, sabendo-se frágil, ousou acreditar que a misericórdia podia ainda salvar o mundo.
E por falar em Misericórdia, para o Papa Francisco, a misericórdia não foi apenas um atributo entre outros, mas o verdadeiro coração do cristianismo. Ao colocar a misericórdia no centro, Francisco deslocou o eixo da Igreja: menos tribunal, mais hospital; menos poder, mais proximidade; menos rituais e mais vida.
Os símbolos são muito importantes, até porque passam uma poderosa mensagem: quem não se lembra da sua via sacra, absolutamente sozinho, na Semana Santa da covid, do lava pés aos presos, dos velhos sapatos pretos, da residência modesta, das flores lançadas no mar de Lampedusa? E das palavras fortes sobre “a economia que mata”, a ecologia e a defesa da nossa casa comum, a crítica ao clericalismo? Foi um Papa que mexeu connosco, mesmo com os não crentes.
Não vou fazer spoiler completo do livro de Javier Cercas mas sempre direi que termina com um telefonema que o Papa fez em dezembro de 2024, poucos meses antes da sua morte, para mandar um abraço ao escritor. No último Natal tínhamos o Papa Francisco entre nós. Em março fui a Roma e já não vi o Papa. Estava então no hospital, a preparar-se para um dia nos reencontrar.
Oscar Gaspar
Presidente da Mesa da AG da SCM Vagos
