OPINIÃO

O presépio em nós ao longo do ano

A história do Natal que celebrámos recentemente é impossível de determinar historicamente quando aconteceu ou onde. As dúvidas sobre o ano de nascimento de Jesus Cristo são muitas.
Naquela cultura não se valorizava o dia do nascimento, nem o ano, e essa informação não é fornecida em qualquer fonte histórica. Os evangelhos mencionam alguns acontecimentos que podemos relacionar e datar, mas que não condizem entre si.

Os evangelistas não eram repórteres a registar o nascimento de Jesus e tudo o resto à volta dele.
A intenção dos evangelhos era tão só demonstrar que o menino era o Messias. Quem os escreveu tinha uma intenção de fé e não de relato factual.
Na verdade, os mitos messiânicos surgiram com mais detalhe durante o exílio judaico na Babilónia, mais de 500 anos antes.

É quando nos sentimos presos, que sonhamos mais com a liberdade.
Os idosos naquele tempo profetizavam às crianças que um dia seriam libertados por um messias que só podia nascer na mesma cidade onde nasceu maior rei que Israel já tinha visto, o rei David.

Mas como é que José e Maria, que viviam em Nazaré no Norte, haviam de estar em Belém, bastante mais a sul, aquando do nascimento do seu bebé, para que este pudesse ser considerado o messias?
Nada melhor que o pretexto de um recenseamento que os obrigasse a fazer a viagem.
Houve de facto um recenseamento ordenado por Quirino, mas terá acontecido entre os anos 6 e 7 d.C.
O rei Herodes é também mencionado no Natal dos evangelhos, mas este terá morrido por volta do ano 4 a.C., cerca de dez anos antes do recenseamento.
Datas impossíveis de conciliar. Provavelmente Jesus terá nascido mesmo em Nazaré e não em Belém, mas isso não retira nada à beleza do presépio.

A factualidade histórica é difícil de verificar, mas o que importa é outra coisa e é isso que vai ser relevante para a vida que vivemos a seguir.
O Natal é maravilhoso e rico em simbolismo e esperança num mundo melhor, mas janeiro corrido e o seu espírito parece ter desaparecido já no meio de tanta crispação e conflito que se vive apenas um mês depois.
Crentes ou não, podemos rever-nos hoje no mundo perante esta história. E é isso que proponho, revisitar a madrugada de natal há dois mil anos.

Uma família pobre e humilde, deslocada à força como qualquer refugiado hoje no mundo, que faz uma viagem a pé, com riscos de assaltos e acidentes. Uma mulher grávida, sem lugar num hospital – não existiam – nem sequer em casa de família ou numa hospedaria. Uma família sem habitação, sem acesso a cuidados de saúde, sem trabalho, sem solidariedade maior que um estábulo de animais domésticos.

Seja por fé, seja por cultura, não nos deixe de nos causar espanto o nascimento de um miúdo, filho de pais pobres, deslocados internos, discriminados, migrantes à procura de trabalho, que viveram sob dois regimes de opressão e sem liberdade de expressão. Refiro-me ao império romano e à monarquia da Judeia de então.

Nasceu nas condições mais frágeis, e ainda que considerado messias, salvador ou rei, foi visitado em primeiro lugar por um dos grupos mais discriminados de então.
Os pastores eram à época discriminados por serem nómadas no seu trabalho, por não terem raízes familiares, factor tão valorizado na cultura de então. Para percebermos melhor a discriminação de que eram alvo, podemos lembrar-nos de como as pessoas de etnia cigana são vistas e discriminadas hoje. O ostracismo a que eram votados era semelhante.

Este menino que depois cresceu, desafiou esses abusos de direitos humanos (num tempo em que não estavam sequer conceptualizados) sempre numa opção preferencial pelos pobres, pela liberdade, pela defesa de mulheres, crianças, insurgiu-se perante a injustiça sistémica, falando sobretudo de Amor e dando aos seus contemporâneos sinais daquilo que podia ser o mundo e de como podia ser uma sociedade onde todas as pessoas usufruíssem em pleno da sua dignidade!
Foi prisioneiro de consciência e condenado à morte por desafiar esses poderes absolutos e, para quem tem fé, acabou por vencer a morte. Para quem não tem, não deixa de ser um grande exemplo de vida dada pelos outros e que marcou a História da humanidade.
Tanto de nós persiste neste presépio. Tantas dificuldades, tantos desafios. Que a história vivida então nos seja inspiradora para a nossa de hoje.

Pedro A. Neto
Diretor Executivo da Amnistia Internacional-Portugal

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