EFEMÉRIDE

Memórias do fogo e da desolação

EFEMÉRIDE

DANCETERIA. «A Lua» abriu portas em junho de 1986, numa sexta-feira, no dia 13, por causa dos azares. Propriedade de José Rocha Almeida, ex-emigrante das terras de Simon Bolivar, estava localizada para as bandas dos Cardais, outrora denominada «zona industrial». Muita animação, um mar de gente na noite da inauguração, com as viaturas deixadas a largas centenas de metros. Um dos erros foi a distribuição massiva de convites, que prejudicou quem queria divertir-se. O que não terá acontecido ao comandante dos Bombeiros, que havia sido convidado. Antes da meia-noite António Castro foi chamado ao quartel, para decidir o que fazer, face ao alarme de incêndio que lavrava na zona de Águeda, mais concretamente em Urgueira, pequena aldeia no limite do concelho, em plena serra do Caramulo.
Com vento superior a 90km/hora o fogo viria a desenvolver-se, com violência, ameaçando várias aldeias e uma vasta área de floresta. Apesar das difíceis condições, cinco viaturas com 21 operacionais avançaram em socorro da população de Avelal. Surpreendidos pelo fogo, que alastrava em turbilhão, foram forçados a retroceder na EN 230, mas alguma coisa correu mal. Perderam a vida, em Castanheira do Vouga, 13 bombeiros de Águeda e Anadia e três civis. Um bombeiro sobreviveu, com graves queimaduras, ao ficar várias horas dentro da viatura. Oito haveriam de salvar-se, na fuga precipitada em direção ao Rio Águeda.
À época eu fazia parte da direção dos Bombeiros, liderada por César Mesquita. Cumprindo o nosso dever, acabamos por ir ao teatro de operações, para tentar perceber a dimensão da tragédia. Nesse tempo [ainda] não havia Proteção Civil nem Siresp, para tentar reclamar culpados. Ou então perceber se a gestão florestal, pública e privada (para já não falar dos eucaliptos), dificultavam o diálogo entre partidos. Em Águeda a tragédia tinha sido mesmo a doer.
Segundo números oficiais, os bombeiros de Vagos disponibilizaram 42 homens para combater o incêndio, tendo utilizado apenas três viaturas. Ao longo de 38 horas, percorreram 826 quilómetros na zona sinistrada, entre Águeda e Caramulo. Uma semana depois, a direção da associação mandou rezar uma missa, sufragando as vítimas que pereceram, na defesa dos ideais do voluntariado.
TESTEMUNHO. A pedido de Horácio Marçal, assinei o seguinte texto no Soberania do Povo: «Transfigurados, máscaras de cansaço que não de tédio, desalento e incredulidade estampados nas histórias que necessariamente têm para contar, acabei por encontrá-los após algumas horas de busca, calcorreando os confins martirizados da terra queimada do concelho de Águeda. Bolfiar ficava do outro lado, onde quilómetros à frente as chamas, de forma matreira, tinham lambido grandes quantidades de mato e de pinhal. Devorado vidas humanas indefesas, que o destino lançou contra a morte.
A-dos-Ferreiros, Castanheira e Vale dos Lobos, onde os homens de Vagos se encontravam, era agora, felizmente, a imagem distorcida da madrugada de sábado. Cinco horas da tarde, tudo era diferente, para melhor, com elementos da florestal pelo meio, e grupos especiais de sapadores na cobertura da retaguarda.
Extensas áreas devastadas, eram agora cemitérios de cinzas, estranhamente sem vida, que um popular, enxada ao ombro e suor na testa, voltava a entreolhar com mágoa e dor. Encosta, alquebradas, árvores de grande porte haviam vergado sob a força da borrasca assassina. Por todo o lado o inferno de brasido ainda incandescente que à viva força a mangueira da UMM teimava em debitar de água.
Com homens e material praticamente exaustos, ninguém conseguiria esquecer as horas dramáticas vividas na fatídica madrugada, quando o vento ululante e traiçoeiro, impelira para a morte vítimas indefesas e sem culpa, instigadas pela vontade firme de servir, na defesa de populações afetadas pelo fogo. Águeda-cidade, na tarde de sábado era ainda a capital da incerteza. Continuava sitiada, por forças de voluntários, que chegavam de todos os lados, que respondiam generosamente ao apelo, que tinha sido lançado nas últimas horas. Era a cadeia da solidariedade a funcionar, que só o voluntariado consegue reviver».

Eduardo Jaques

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