Para aquilo que projetei trazer, não seria necessário recorrer ao dicionário, mas é sempre bem aceite, e confere uma certa propriedade e estatuto a qualquer redação, citar o bíblico, tradicional, dicionário da língua portuguesa. Recordo, com um sorriso, a forma como ele acompanhava, tal gémeo siamês, qualquer livro que estivesse a ler durante a minha adolescência. Provido de um lugar, apesar de secundário ainda assim nobre, na minha mesinha de cabeceira. Anexo a um lápis. E sempre que surgia uma palavra por mim desconhecida na escrita realista e burguesa do Eça, no léxico macabro de toda a maquinaria de venenos da Agatha Christie, ou nas quezílias românticas e carnais dos protagonistas emocionalmente instáveis do Saramago, lá ia eu sublinhar ao dito cujo. Mas com alguma tristeza agora reflito que, do primeiro autor (e dos meus favoritos), de poucas palavras me recordo. Do último, só me restou a instabilidade emocional. Da segunda, talvez por exercitar pouco a projeção fina de planos de homicídio, o escasso repertório que me ficou de nada me serve.
Por exemplo, lembro que o cianeto deixa um hálito a amêndoa. Se fosse um substantivo feminino, encaixava perfeitamente na descrição romântica de femme fatale. Adequado para ludibriar qualquer suspeita de que não se tratou de um homicídio, mas antes de uma overdose de amarguinha. Contudo, o único composto mortífero que ainda vai estando presente no meu dia-a-dia, com lugar contemplado na tabela periódica, é o chumbo. Todo o hematologista que se preze sabe que intoxicação por chumbo (ou saturnismo, já que na Roma antiga, o denso e nobre chumbo era visto como uma oferenda do deus Saturno) pode simular uma anemia sideroblástica ou uma porfiria. Ao microscópio, os glóbulos vermelhos (sem dúvida as nossas células mais nobres por excelência, que mesmo desprovidas de núcleo, encaram com seriedade e grave responsabilidade, ininterruptamente durante todos os seus 120 dias de vida, o fardo constante do transporte de oxigénio a todas as restantes), aparecem preenchidas por uma bela constelação de sardas violáceas, a que alguém chamou de pontilhado basofílico. Acreditem, é um nome bastante simples, e quem o batizou tinha certamente imensa empatia por quem começava ainda a trilhar caminho na medicina. Sim, porque o mais habitual em conceitos médicos seria utilizar uma metáfora completamente descabida, como “sinal do salpico de aguarela lilás por um pintor ébrio de Montmartre”, ou um epónimo impossível de soletrar, como “sinal de Saueressig-Gotfridas-Bengtsson” (fui pesquisar por apelidos pouco ortodoxos em alemão, lituano e sueco – os médicos adoram isto!). Já a utilidade deste conhecimento é perfeitamente duvidosa, visto que felizmente já não se vêm casos destes.
E deixo assim um confuso mote para refletirmos sobre a pertinência das metodologias de ensino atuais. Com muita pompa vos defino o saturnismo, mas a tremer que nem varas verdes fico se alguém perguntar num avião “há algum médico a bordo”?. Já planeei que, se algum dia me fizerem uma abordagem dessas em plena troposfera, eu vou responder “apresente-me as atitudes que posso tomar na forma de escolha múltipla”. Ah, com escolhas múltiplas posso eu bem, não tendo sido eu totalmente formatado pelo ensino superior a escolher entre cinco opções. Se a vida fosse uma escolha múltipla, não havia forma de falhar. Mas não é. É uma pergunta de desenvolvimento, aberta, sem matriz de correção…
E percorridos estes meandros que possivelmente só fizeram nexo para mim, já só preciso de perfazer mil caracteres para regressar ao tema principal deste suposto artigo de opinião. E suspiro de alívio, porque na verdade não me considero detentor de muitas. Mas enfim, segundo o dicionário da língua portuguesa: “opinar é o ato de emitir um modo de ver pessoal ou subjetivo”. Não é propriamente um verbo difícil de conjugar, sendo dos que terminam em -ar. Mas porque não optar pelo verbo “saber”? No presente do indicativo, claro! Com uma sílaba a menos, mais rápido de vocalizar, provido de uma fonética muito mais assertiva, com caráter de conteúdo e conteúdo no carácter, características estas que procuramos e admiramos num ser humano. Antes dizer “eu SEI que é assim”, do que dizer “eu opino que provavelmente poderá ser assim”. Esta última oração claramente proveniente de uma pessoa frouxa, insegura e sem personalidade… Finda a ironia, estou tentado a afirmar que considero uma pessoa que opina muito mais misteriosa do que uma que sabe. É admirável, ou talvez infantil, um mero e singular indivíduo ver-se como possuidor infalível de alguma verdade, quando toda a humanidade, em 2,5 milhões de anos de existência, após a conceção de cerca de 10.000 religiões, ainda se auto-flagela à procura d’A verdade.
Fecho assim este artigo de “des-opinião” com um apelo. Abracem com convicção este novo verbo “opinar”. Não como quem não tem opinião! Mas como quem, de facto, a possui, na advertência de que pode ainda não ter observado o assunto através de todas as suas esferas e que está disposto, humildemente, a fazê-lo. Tem efetivamente uma opinião, embrionária e moldável tal bola de argila, e está aberto à sua otimização pela escuta construtiva e pacifista, e é deveras interessante por isso.
Leonardo Moço, Médico