OPINIÃO

É verdade. É mentira, és um aldrabão

Opinião

Avizinham-se tempos estranhos porque é cada vez mais difícil distinguir entre a verdade e a mentira. E nem estou a falar da propaganda que tenta manipular o público, algo que sempre existiu e que foi acompanhando a mudança e o progresso das próprias sociedades. Falo da verdade, pura, crua e dura e da mentira propositada, nociva e ausente de escrúpulos.
Sinto apenas que a verdade está cada vez mais refém e órfã. Quando estudei para ser jornalista, li um livro do repórter polaco Ryszard Kapuściński denominado “Os cínicos não servem para este ofício”. Um livro que procura refletir o trabalho dos jornalistas, as dificuldades e as regras e ainda a responsabilidade de quem se dedica à informação. “Como falar de pobreza, de fome e das guerras? Qual a relação entre a realidade e a narrativa que dela se faz? Pode ser-se um bom jornalista sem motivações éticas? Que alterações foram provocadas no jornalismo pela televisão e a Internet?”. Os cínicos não servem para este ofício porque, para fazer bom jornalismo, é preciso empatia.
As perguntas de Kapuściński mantêm-se atuais. Em particular a que reflete sobre a relação entre a realidade e a narrativa que dela se faz. Hoje em dia, todos podemos narrar a realidade e alcançar milhares de pessoas. O problema, como já deve estar a antecipar, é: quem é que me garante que a aquela narrativa é real? Era para isso que servia o jornalismo. Para tentar aproximar-se, narrativamente, da realidade. Para definir quais os temas que interessam discutir, que definem e moldam a sociedade e o futuro.
Isso acabou. O jornalismo tende a definir cada vez menos. Também por culpa própria e mau trabalho. Mas eu sempre acreditei que a sensatez, ao final do dia, iria imperar no meio da completa desregulação das redes sociais. Que engano. Os meios continuam a evoluir e escândalos como o Cambridge Analytica mostraram o quão permeáveis e influenciáveis somos enquanto indivíduos.
É uma sucessão de problemas. Há falta de educação para saber lidar com os novos meios digitais. Há falta de espírito crítico porque não somos educados para isso. Há falta de tempo para ler, refletir, pensar. Há falta de dinheiro para assinaturas de comunicação social. Há falta.
Acima de tudo, há falta de vontade de não ser refém do algoritmo. Algoritmos que podem ser perniciosos e cada vez mais apurados. Se pesquisar por desinformação visual e multimodal (VMD) irá perceber que esta aproveita o poder combinando de texto, imagens, vídeo e áudio para criar um conteúdo atraente e ainda mais persuasivo do que os meios tradicionais. Conteúdo cada vez mais difícil de refutar porque as pessoas não se expõem a diferentes pontos de vista porque o algoritmo assim o quer. Recentemente, foi notícia o facto de falsos profissionais de saúde, gerados por Inteligência Artificial, estarem a promover desinformação médica. E se a saúde é um tema que nos “dói”, fiquem cientes de que não há área impermeável à desinformação. Para onde caminhamos nós sem a confiança nos especialistas?
Avizinham-se tempos estranhos porque é cada vez mais difícil distinguir entre a verdade e a mentira. E a mentira promove facilmente o ódio. No final do dia, nem esta descrença total em tudo e todos é saudável para nós, como seres humanos. O futuro promete-se distópico. Como é que iremos distinguir a verdade da mentira? Talvez com escolhas. Eu ainda escolho acreditar no jornalismo e tento confiar no próximo.
Nuno Margarido
Mestre em Comunicação

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